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21/03/2023

Mediunidade e Saúde Mental

Desde tempos remotos, as experiências espirituais têm sido objeto de discussão nas mais diversas esferas da sociedade, de céticos a religiosos. São inúmeras as interpretações de sua origem e, ainda que não haja uma resposta definitiva, a comunidade científica tem se dedicado cada vez mais ao tema nos últimos anos. Atualmente, o Brasil é o 5º país que mais produz pesquisa em espiritualidade e saúde, segundo busca na base de dados Scopus realizada pelo pesquisador e psiquiatra Alexander Moreira de Almeida – um dos mais reconhecidos estudiosos do assunto, e que hoje compõe o Nupes (Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde), vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora.

Na Universidade de São Paulo, as pesquisas se iniciaram no final dos anos 1990. Nesse começo, é relevante citar a fundação do Neper (Núcleo de Problemas Espirituais e Religiosos) em 1999, da qual participou Alexander. Ele conta que o Neper foi o primeiro grupo acadêmico de estudo sistemático de medicina e espiritualidade no país, e continua em atividade até hoje, mas com o nome de ProSER (Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade).

Grandes nomes da Psiquiatria e da Psicologia, no entanto, já haviam tomado a espiritualidade enquanto objeto de análise, como Sigmund Freud, Carl Jung, William James, Pierre Janet e Friedrich Meyer. Dentre as principais hipóteses já levantadas, há uma grande diversidade: a experiência mediúnica seria uma manifestação do inconsciente do indivíduo; ela estaria relacionada à patologia, sendo um quadro psicótico; as pessoas que vivenciam esse fenômeno teriam, de fato, acesso a informações paranormais, tendo uma expansão de sua capacidade mental e uma percepção extrassensorial; ou, ainda, elas teriam um contato real com outra dimensão e outras consciências extracorpóreas.

Por ser um assunto de grande complexidade, que perpassa questões culturais e religiosas, abordá-lo a partir de observações científicas pode ser desafiador. Essa foi uma das principais preocupações de Alexander, ele conta, ao desenvolver sua tese de doutorado em 2004, intitulada Fenomenologia das experiências mediúnicas, perfil e psicopatologia de médiuns espíritas, pelo Instituto de Psiquiatria da FMUSP. De acordo com o pesquisador, toma-se como ponto de partida o fato de que essas manifestações sempre existiram; o que se põe em discussão são tópicos como suas causas, por exemplo. “Nós consideramos médiuns as pessoas que referem estar sob influência ou ter o contato com uma dimensão espiritual. Se elas estão ou não em contato, isso é um outro tópico”, afirma. “A experiência em si, o que a pessoa vivencia, é o que a ciência vai investigar – e isso é um fato.”

A sua tese, portanto, teve como objetivo central estudar questões de fenomenologia que envolvem os médiuns, avaliando também seu perfil sociodemográfico, sua saúde mental e o histórico de suas experiências. Para isso, Alexander contou com entrevistas e aplicações de escala de 115 médiuns espíritas em atividade, selecionando aleatoriamente em centros espíritas da cidade de São Paulo. “Posso perguntar o que ela sente, como ela sente, como ela vê o que chama de espírito. E posso relacionar essas experiências-relatos com outros dados. Por exemplo, as pessoas que referem ouvir mais vozes de espíritos têm mais ou menos depressão? Mais ou menos dificuldade de inserção social?”, diz Alexander. “Então, nesse sentido, a gente consegue estudar a religiosidade como fato objetivo, como qualquer outro dado.”

Assim, o estudo considerou como médiuns pessoas que tinham visões, ouviam coisas ou tinham um transe completo, chamado de incorporação. Os resultados apontaram participantes mentalmente saudáveis, com uma razoável adequação social e altos níveis socioeducacionais. Além disso, indícios da psicofonia – para os espíritas, a comunicação de espíritos através da voz do médium – foram definidos como a sensação de presença e diferentes sintomas físicos, além de sentimentos e sensações não reconhecidas como do indivíduo. O mesmo vale para a intuição, que, por sua vez, está relacionada ao surgimento de pensamentos que a pessoa não identifica como sua. A audição e a vidência, ainda, foram caracterizadas pela percepção de imagens ou vozes interna ou externamente.

De acordo com Alexander, foi ainda apresentado que quanto maior era a frequência dessas experiências, melhor era a saúde mental desses médiuns; e essa saúde mental era, ainda, melhor do que a da população em geral. Outra conclusão importante da tese foi que a maioria dos participantes tiveram o início de suas experiências mediúnicas na infância, muitas vezes gerando sofrimento pelo não entendimento dos fenômenos, mas sendo posteriormente integradas de modo positivo em seus cotidianos.


A importância do diagnóstico diferencial

A constatação de que essas vivências alucinatórias ou de influência não necessariamente implicam em um diagnóstico de esquizofrenia, por exemplo, traz à tona a necessidade de distinção entre tais condições por parte da comunidade médica. “É preciso tomar cuidado para não ‘patologizar’ uma experiência normal, mas nem o inverso – ou seja, não achar que é normal uma experiência patológica”, afirma o pesquisador. A questão, por sua vez, tem sido muito investigada. Alexander faz parte de um grupo de trabalho da OMS (Organização Mundial da Saúde) que faz essa análise e que trabalhou com uma proposta para o CID-11 – a próxima versão da Classificação Internacional das Doenças.

Segundo o pesquisador, há alguns critérios que ajudam a fazer essa diferenciação, ainda que não sejam absolutos. Um deles é o sofrimento que a experiência causa no indivíduo, gerando empecilhos em seu convívio social e impossibilitando o desenvolvimento de atividades diárias, como o trabalho ou o estudo. Além disso, há outros sintomas específicos que estão presentes em um quadro de esquizofrenia, como a desorganização cognitiva, que prejudica a capacidade de raciocínio. São sintomas negativos, que não acontecem na experiência espiritual, segundo Alexander. “A pessoa saudável, de modo geral, tem uma certa noção de que aquilo ali pode não ser bem compreendido pelos outros. Ela tem um insight sobre o problema”, acrescenta. Outro ponto é o controle sobre a experiência – com o tempo, o indivíduo que não possui uma condição patológica consegue lidar com essas manifestações, extraindo até mesmo benefícios delas. “Ela gera até um aprimoramento de sua personalidade e do seu bem-estar, diferente da doença mental”, diz.

Desde 2004, entretanto, avanços aconteceram na área. Evidências disso são a criação de uma comissão de estudos e pesquisa em espiritualidade e saúde mental pela Associação Brasileira de Psiquiatria e o I Encontro Global de Espiritualidade e Saúde Mental no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, ocorrido em Florianópolis, no ano de 2005. Além disso, a Associação Mundial de Psiquiatria agora tem uma seção dedicada à espiritualidade e psiquiatria, da qual Alexander é o coordenador, e que publicou, em 2016, um position statement – ou seja, uma normativa – acerca da importância de psiquiatras conhecerem a espiritualidade de seus pacientes.

Mas, mesmo que a visão acerca dos impactos da espiritualidade na saúde tenha se modificado muito, há ainda alguns desafios a serem ultrapassados na área. Dentre eles, o pesquisador cita a importância de se aprofundar os conhecimentos sobre diagnóstico diferencial entre experiências patológicas e saudáveis. A tentativa de entender a origem dessa experiência, por sua vez, também entra na lista de desafios. Alexander, ainda, fala sobre a necessidade de se estudar as formas como a espiritualidade influencia a saúde das pessoas, além da melhor maneira de aplicar esses conhecimentos na prática clínica. “Não se trata de doutrinar alguém, de converter a pessoa para uma visão religiosa ou anti-religiosa. Jamais impor qualquer visão é muito importante”, diz. “Mas trata-se de trabalhar com a religiosidade, espiritualidade do paciente.”


Agência Universitária de Notícias






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