Há tempo venho estudando o Xamanismo, procurando estabelecer pontos de semelhanças e diferenças com a Umbanda. Uma das questões que me direcionou a esse estudo e sempre fez despertar minha curiosidade por outras culturas religiosas e espiritualidades diversas é o fato de que na Umbanda se manifestam espíritos de origens diversas, desde um caboclo brasileiro, um escravo, um aborígene, um hindu, um inca ou egípcio.
Essas entidades que alcançaram, e agora se manifestam na Umbanda, não foram umbandistas em sua última encarnação, logo nos ensinam que é possível evoluir e ascender por meio de qualquer tradição, desde que encontre um caminho ético e uma proposta virtuosa. Querer conhecê-los a esses mentores de Umbanda, é mergulhar em universos diferentes e muito ricos cultural e espiritualmente. Essas incursões nos permitem dar conta de que há algo de incomum que permeia as várias culturas do sagrado, independente da complexidade ou evolução tecnológica que certo povo tenha em relação a outro.
As experiências de transcendência, a mística, o transe e o êxtase espiritual são inerentes ao ser humano, são antropológicos e encontrados em todos os lugares no espaço e no tempo. E da mesma forma encontraremos na Umbanda esses mesmos fenômenos que a liga e aproxima de todas as outras tradições. Esse algo em comum já fez muita gente pensar na existência de uma religião primeira e original da qual todas as outras seriam desdobramentos, enquanto evolução e degradação da raiz primeva. Assim surgiram muitas teorias cientificistas defendidas por cristãos, ocultistas, esotéricos e até umbandistas, que adotaram a idéia de aumbandã, que é uma forma adaptada do conceito de teosofia, ambos com a racionalização de um mito, o mito de uma religião pura, original, que permeia e está presente em todas as outras.
As experiências comuns em todas religiões são mais humanas que “religiosas”, mais espirituais que rituais, mais instintivas que metodológicas, mais pertencentes à sensibilidade que à técnica, muito mais poesia do que prosa. São experiência que vem de nossas entranhas, são viscerais, “humano, demasiado humano”, “existem desde que o mundo é mundo, desde que o homem é homem”, podemos assim buscá-las nas sociedades mais primitivas, antigas e simples.
Essas experiências em sua forma mais bruta (não lapidada), nos mais isolados e remotos grupos sociais que se tem notícia, em toda sua simplicidade em lidar com o transcendente, é o que se convencionou chamar de Xamanismo. No entanto, as mesmas “experiências xamânicas”, boa parte delas, se repetem em culturas mais complexas, consideradas mais evoluídas socialmente ou tecnologicamente falando.
O que é Xamanismo, afinal?
Mircea Eliada, um especialista no assunto, nos afirma que um xamã pode ser um feiticeiro, um mago ou sacerdote, mas nem todo feiticeiro, mago ou sacerdote é um xamã, inclusive definindo que em muitas tribos, o sacerdote-sacrificante coexiste, sem contar que todo chefe de família é também chefe do culto doméstico.
O xamã é o grande mestre do êxtase. Que tem por primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada: xamanismo = técnica do êxtase. E por êxtase aqui podemos entender “transe”, estado alterado de consciência.
O xamanismo é uma técnica arcaica de êxtase, ao mesmo tempo mística, magia e religião, no sentido amplo do termo.
Desde o início do século, os etnólogos se habituam a chamar como sinônimos os termos “xamã”, “medice-man”, feiticeiro e mago (em português poderíamos acrescentar a essa lista os termos “curandeiro” e “pajé” – nota da tradução da versão de 2002) para dotar certos indivíduos dotados de prestígio mágico-religioso encontrados em todas as sociedades “primitivas” (p15).
Vemos na obra de Eliade, na tradução para o português, a observação de que “poderíamos acrescentar a essa lista de xamanismo, os termos “curandeiro” e “pajé” ao lado de feiticeiro, mago e medice-man, o que nos leva à pajelança indígena e à pajelança cabocla e suas ramificações e encontros com a cultura afro e européia, a qual fez surgem um sem número de espiritualidades.
A pajelança indígena é um xamanismo realizado pelos diversos grupos indígenas, guardando suas semelhanças e diferenças, em sua pluralidade de práticas, sem no entanto nos ater a quaisquer peculiaridades, podemos dizer que no geral e no específico, seu conjunto de práticas é xamanismo indígena brasileiro.
A pajelança cabocla é aquela praticada por grupos populares que tiveram ou não contato com a pajelança indígena e que realizam práticas muito semelhantes, nas quais algus casos se verifica o praticante justificando a sua ação por meio da explicação de que incorpora o espírito de um pajé (indígena) e que é ele quem realiza a pajelança, na qual o médium em questão está em transe de incorporação.
Agora, trazendo essa reflexão para a Umbanda, temos por parte dos caboclos que incorporam nos adeptos (médiuns) trabalhos mediúnicos que podem perfeitamente se qualificar como pajelança, em muitos casos a justificativa de que se manifesta um caboclo que em vida (em uma das tantas encarnações) foi um pajé e que agora volta para continuar seu trabalho junto ao médium de Umbanda como uma missão assumida. Com relação a essa explicação podemos dizer que aqui quem realiza o xamanismo é o espírito, no entanto, a um observador externo, fora dos conceitos teológicos e doutrinários, o que se vê é aquele homem ou mulher exercendo uma prática xamânica, na qual suas explicações sobre mediunidade e incorporação de espíritos são simples observações do que acontece com ele, o médium, enquanto se realiza o processo que tem em si todas as características xamânicas. Está incorporado de um espírito indígena, pajé e xamã, e nesse momento está realizando xamanismo, pois o médium em sua constituição física está ali presente, seja consciente ou não desse fato. Se faz uma cura, essa se realizou por meio dele, a se fizer alguma bobagem, a culpa é dele também.
Ao incorporar um caboclo que trabalhe com práticas xamâncias, posso não me tornar um caboclo, posso não me sentir um xamã, mas de fato estou sendo o veículo dessa prática que está acontecendo por meu intermédio, estou praticando xamanismo em parceria com uma força, inteligência, uma outra consciência que toma a frente de meu mental e que identifico como caboclo, uma entidade (espírito) manifestante da qual me considero apenas um instrumento, mas que de fato está em mim, realizando a prática xamânica.
Talvez por esse e outros aspectos, o professor de teologia Edmundo Pellizari afirma que “a Umbanda é uma poderosa pajelança urbana”, o que podemos, por associação, expressar como “a Umbanda é um poderoso xamanismo urbano”; não apenas um xamanismo, mas xamanismo, mas também xamanismo em algumas de suas expressões.
Alexandre Cumino
Fontes consultados: ELIADE, Micea. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2002. – CUMINO, Alexandre. História da Umbanda. São Paulo, Editora Madras, 2010.
Fontes consultados: ELIADE, Micea. O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2002. – CUMINO, Alexandre. História da Umbanda. São Paulo, Editora Madras, 2010.
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