Visita Entre Religiosos - Tenda de Umbanda Luz e Caridade - Tulca

Visita Entre Religiosos

Publicado em 26/05/2016

Visita Entre Religiosos
Livro Fala Preto Velho
Autor: Pai João / Wanderley Oliveira

Cap. 8 - VISITA ENTRE RELIGIOSOS NO HOSPITAL ESPERANÇA

"Quem vive para agradar aos outros 
está construindo um campo de atração 
para a ruína, a enfermidade e a depressão."

Nas tarefas de tratamento para religiosos no Hospital Esperança, são inscritas aquelas pessoas que tiveram problemas graves com o preconceito, enquanto no corpo físico. Nego estava participando de uma turma de trinta e cinco pessoas como colaborador de educação.

Imaginem que experiência é essa: evangélicos visitam centros espíritas. Umbandistas pregavam para católicos em suas ingrejas. Já pensaram, muzanfios, uma assembléia da Igreja Evangélica bem rigorosa ir assistir a uma sessão espírita para desenvolver o sentimento de fraternidade?

Chegou o dia para aquela turma de trinta e cinco alunos fazer a tão esperada visita a outro templo religioso com fins educativos e de tratamento.

A escolha do templo era feita pelos facilitadores depois de uma minuciosa pesquisa a respeito de quais correntes poderiam trazer melhor aprendizado àquele grupo. Foi escolhido, na ocasião, o templo umbandista. Havia três espíritas no grupo de trinta e cinco estudantes, entre eles, Anésia, líder espírita influente em um estado do sul do Brasil. Antes de começar a visitação, ela procurou a facilitadora Julinha e expôs:

- Estou tomada por uma enorme tensão por conta dessa visita.
- Acalme-se, Anésia. Deus tem caminhos novos para você.
- Eu confesso que tenho receio de sair correndo de lá.
- Vamos lá?
- Seja o que Deus quiser!

A equipe visitante daquela oportunidade participaria de uma gira de caboclos e foi recebida com carinho pelo Pai Zequinha às portas do templo umbandista. A casa estava lotada. Era um templo de proporções medianas, que abrigava duzentas e cinquenta pessoas com conforto.

A gira começou, e os atabaques rufaram ao som de um ponto de Oxóssi. Médiuns vestidos de branco dançavam de forma rítmica. Após a dança dos médiuns, de uma pequena porta coberta por um véu, saíram os caboclos. Tinham a pele muito vermelha e cocares de cor verde limão que irradiavam uma luz muito intensa.

Os atabaques pararam, e entrou a comandante da gira noturna. Era a cabocla Jurema, que cumprimentou a todos no seu típico palavreado:

- 'Esse que esses fios" aqui, para todos esses "fios" que louvado seja Deus! Essa cabocla veio "buscá fios de pembá" (trabalhadores da umbanda) que tão sem rumo nas fileiras da vida. "Buscá fios" que largaram da luz para a sombra do preconceito. "Esse que essa" cabocla Jurema veio e salve todos os caçadores de Aruanda"

De repente, Jurema parou em frente à Anésia olhou fundo em seus olhos e disse:

- "Esse que essa fia" é minha protegida!
- Sou mesmo cabocla? - respondeu Anésia timidamente.
- A "fia" já acendeu lume (vela) com minha mão no terreiro e sentiu uma fé que esqueceu no tempo. "Esse que essa fia" é minha protegida de pemba. Né verdade fia?
- Sim, é verdade, Jurema. Eu me lembro disso.
- E a fia não vai voltar pra tenda de axés (casa umbandista) de onde saiu?
- Como assim Jurema?
- "Óia" aqui bem fundo no "ôio" de Jurema, fia.

Anésia fixou seu olhar no olhar da cabocla, que disse em voz firme:

- Anésia foi fia fraca de vontade. Mudou de religião pra fazer vontade de marido turrão. Seu marido prendeu sua vontade, fia. Cabocla fala verdade, fia?

Anésia ficou sem graça com a fala e , sem saber explicar a razão, caiu em choro compulsivo, dizendo descontroladamente em voz alta:

- Eu amo a umbanda, eu amo os caboclos, eu amo o atabaque, eu amo esse lugar, não me tirem daqui, não me tirem daqui nunca mais...

A cabocla, nessa altura da catarse de Anésia, pegou-a pela mão direita e rodopiou-a no próprio eixo do corpo por várias vezes, e Anésia, assumindo outra fisionomia, com gestos rápidos, começou a correr em disparada pelo salão, tão rápido que começou a volitar, formando uma cortina de cor verde em torno de seus movimentos. Sob os aplausos dos caboclos presentes, todos saudaram em uníssono: òké Aro! Arolé (saudação a Oxóssi) e Oké caboclo!

São as coisas do mundo dos espíritos, muzanfios. Contando assim, parece até ficção, né, fio?

Anésia guardava na alma uma frustração não resolvida de mais de quarenta anos. Havia sido umbandista quando jovem. Casou-se com um espírita devotado que lhe incutiu a ideia de avançar na sua caminhada espiritual, largando a umbanda, que, na concepção dele, era uma religião bem atrasada em relação ao espiritismo.

Passados dois anos de sua retirada dos serviços de incorporação e da eliminação forçada de vários rituais que sustentavam sua fé vigorosa, Anésia tombou em depressão. Nunca mais foi a mesma mulher alegre e disposta. Teve sua vontade, sua escolha e seu desejo sufocados pela vontade do marido "mais esclarecido". Queimou uma etapa, desrespeitando sua caminhada evolutiva.

Por longos anos, insistiu em voltar para a umbanda, pois recebera vários recados de pais de santos e de médiuns dizendo que sua depressão tinha como causa o seu afastamento dos serviços e dos rituais.

Anésia não se respeitou, não viveu o que precisava e preferiu escutar a voz de quem lhe compartilhava a sagrada tarefa do lar. Sua frustração, seu vazio interior em função de abandonar aquilo que lhe conectava com seu Deus interior, com sua fé profunda e sólida, abriu campo para a dor da revolta muda . A depressão tirou o brilho dos últimos dias de Anésia.

Ali,naquela visita, ela resgatou seu propósito, sua verdade, seu mapa único e intransferível, que ninguém, por mais que a amasse, teria o direito de alterar a rota, seja por qual motivo fosse.

Anésia se tornou umbandista novamente do lado de cá da vida. Deverá renascer mãe de santo, com amplos compromissos no bem e na caridade.

O que nego véio fica às vezes pensando num sabe se vai acontecer é o que vai dizer o "fio" marido dela quando chegar do lado de cá e vê-la paramentada de sinhá mãe de santo...(risos).




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