Teologia da Jurema Sagrada, existe alguma?
“Jurema, minha Jurema, Jurema, Jurema minha, Jurema Preta, a senhora é a Rainha, ela é dona da Cidade, mas a chave é minha”…
(Cântico sagrado da Jurema).
Não existe ainda uma teologia escrita e codificada sobre o culto da Jurema Sagrada, mas vou aqui resenhar alguns traços introdutórios. A teologia da Jurema é originária da matriz indígena do nordeste brasileiro, em especial, etnicamente falando, dos Tupis. É baseada na fé em um Deus único, aparentemente o mesmo dos cristãos, mas devemos incorporar o entendimento de que este “Deus” na verdade pode ser feminino como a mãe Tamain dos Fulniô, ou pai Tupã, entre outros.
Na perspectiva do catolicismo popular e do espiritismo kardecista a reencarnação é um elemento fundamental em suas cosmologias, como também o é na crença religiosa dos Juremeiros, que acreditam inclusive na possibilidade do espírito retornar como Mestre ou Mestra (divindades/entidades que foram seres humanos e que viveram no mundo carnal, pertenceram à Jurema como sacerdotes ou realizaram atos heróicos ou notórios e místicos em defesa dos excluídos durante sua passagem na terra) para cumprir parte de sua “missão.
A crença em elementos, símbolos, objetos, imagens, árvores sagradas, animais sagrados (a exemplo do besouro mangangá), no Cachimbo ou Gaita e na Fumaça sagrada, compõe toda fé e imaginário teológico da religião, que absorveu elementos do cristianismo primeiramente, depois do imaginário da umbanda (a partir da década de 1970) juntando-se ainda ao Kardecismo do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (Allan Kardec). Séries de lendas urbanas também compõem o corpo de sua oralidade litúrgica, além de contos místicos e fábulas sobre Mestres e Mestras que realizaram atos mágicos em um tempo remoto. A Jurema em si, ainda, representa e materializa uma Deusa, já que para a maioria dos povos indígenas do nordeste a divindade suprema da existência seria mulher (Mãe Tamain). Ela é algo superior e incompreensível que toma a forma de guia, de protetora, de Deusa, a Deusa próxima, ao alcance das mãos e do espírito. Uma divindade amiga e inimiga, que podemos rogar quando necessário, a exemplo da expressão: “Que a Jurema me abençoe me proteja e me guarde”, neste caso ela é citada e rogada como Deusa, com o mesmo significado do Deus cristão que pode proteger, abençoar e guardar.
No culto, o princípio fundamental é a cura do corpo, mente e espírito, o bem estar do ser humano em todos os seus aspectos, a resolução dos problemas gerais do cotidiano e a evolução espiritual através da caridade e dos trabalhos de cura.
Bem e mal não são polarizados e nem esboçam maniqueísmo. Estes conceitos são encarados com naturalidade dentro do culto, que permite tanto usar a “ciência” para o “bem” quanto para o “mal”, sabendo-se que há a lei do retorno também presente na religião kardecista. O pecado é algo encarado como relativo, salientando que a defesa espiritual é um ato digno e que deve ser feito sem temer os encargos que o “inimigo” sofrerá materialmente ou espiritualmente. Podemos ainda ver características próximas com o Vodu do Haiti, que é uma religião popular e muito difundida neste país, sendo considerada uma religião de guerra, onde suas divindades/entidades incorporam a defesa do povo contra o poder dominante, tendo papel muitas vezes definitivo e fundamental nas decisões políticas do Estado. Na Jurema, vemos também este papel, já que nas surdinas das noites, os políticos vão aos terreiros de Jurema decidir seus destinos nos seus meios de relações de poder.
“A Pajelança Jurema Nativa possui um conhecimento e uma Tradição Milenar” (segundo o nativo Taki Cacique Pajé da Tribo Karirí Xocó apud Alberto Junior, 2007). Os ancestrais divinizados na Jurema, tem o mesmo valor dos Babá Ègún (ancestrais ilustres divinizados que quando em vida eram iniciados ao culto de um Orixá) para os povos Yorùbás. Eles são cultuados e respeitados de forma específica, mas semioticamente semelhante a esta tradição, onde a ética, o respeito e a organização social são mantidos por estas personalidades divinizadas, que voltam para reorganizar ou manter o controle das tradições.
Maria do Acaes, a grande Juremeira histórica, nos remete ao imaginário da Jurema paraibana, que teve tantos valores agregados a ela e à sua mesa de Jurema, que curou e revolucionou a vida de muitos e muitas em seu tempo. Hoje, é saudada em todas as casas com o vigor de ancestral ilustre que fez da Jurema uma forte tradição, que emanou conceito litúrgico organizado através de sua experiência própria para os dias atuais. Isso se vê claramente nas casas mais tradicionais que preservam inclusive os elementos de mesa, igualmente a antiga tradição.
A cosmovisão religiosa da Jurema centraliza-se no reino da Jurema, “… que, em Alhandra, é também denominado de Encantos. Esse reino, de acordo com os juremeiros da região, seria composto de sete cidades, sete ciências: Vajucá, Junça, Catucá, Manacá, Angico, Aroeira e Jurema. Como mencionado acima, Andrade foi o primeiro a relatar a existência de um Reino da Jurema. Este, segundo o autor, se dividiria em outros onze reinos: Juremal, Vajucá, Ondina, Rio Verde, Fundo do Mar, Cova de Salomão, Cidade Santa, Florestas Virgens, Vento, Sol e Urubá (ANDRADE, 1983). (Salles, 2010; p. 82).
Cascudo, em Meleagro, menciona a existência de um mundo dos “encantados”, que seria dividido, segundo alguns, em sete: Vajucá, Urubá, Juremal, Josafá, Tigre, Canindé e o Fundo do Mar, e cinco, segundo outros, que seriam os quatro primeiros, mais Tanema, ou o Reino de Iracema. Esse “mundo do além”, segundo ele, seria dividido em Reinados ou Reinos, cuja unidade seria a aldeia. Cada aldeia, por sua vez, teria três mestres. Assim, 12 aldeias formariam um reino, composto de 36 mestres. Nesse reino, haveria cidades, serras, florestas e rios” (Cascudo, 1978, apud Salles, 2010; p. 82). Mas esta complexidade pertence a uma forma de pensar o mundo através da experiência própria transcendental da viagem à Jurema, atividade muito comum aos Juremeiros antigos e índios que ao ingerir o vinho sagrado feito com as raízes da Jurema Preta (Mimosa hostilis), elevavam-se a estes mundos que eram revelados em etapas, e onde se buscava a tão citada ciência da Jurema.
A cura na Jurema pode-se compreender dentro de uma lógica holista. Os diversos processos de curandeirismo que envolvem um vasto conhecimento de ervas e magias dentro da medicina indígena/dos juremeiros contidos na ciência da Jurema, abrangem o corpo físico (a “matéria”), a mente e o espírito.
As entidades que compões a jurema são os Caboclos e índios (os guardiões da Jurema, junto com Malunguinho), Mestres Juremeiros e Mestras Juremeiras, Trunqueiros/Exús, cangaceiros, crianças, marinheiros, ciganos, freis, encantados, espíritos de baixa evolução, etc. Assim como no Kardecismo, o juremeiro pode receber entidades diversas, obsessores e outros espíritos de linhagens inesperadas, como por exemplo, os espíritos hinduístas entre outros.
A composição e representação imagética nesta religião se compõem de imagens na estatuas e estatuetas, na maioria de gesso, com representações ainda rústicas de suas divindades/entidades. Não se sabe bem ao certo como os produtores de imagens de gesso tiveram conhecimento para retratar em suas esculturas imagens que poderiam equivaler a estas divindades/entidades, mas isso não é importante entre os religiosos, pois a representação não é fundamental no culto, podendo ser completamente abolida por uma “princesa” ou “príncipe” (taças e copos, com os fundamentos da Jurema).
A iniciação no culto da Jurema assume diversas formas e metodologias não seguindo um padrão unificado e liturgicamente igual nos terreiros. O Juremeiro ou juremeira pode nascer com a ciência e não precisar ser juremado (iniciar-se no culto), da mesma forma como uma divindade/entidade pode solicitar esta iniciação, que varia de caso a caso. O ritual chamado de Tombo da Jurema ou Juremação é um dos mais conhecidos entre os religiosos, mas nestes casos, é o mestre ou mestra, caboclo ou trunqueiro que recebe o ritual, utilizando-se do corpo do juremeiro.
O termo catimbó, muito utilizado dentro do culto da Jurema, significa “prática espírita afro-indígena, de finalidade terapêutica, originada da fusão de elementos da pajelança e de cultos bantos. É conduzida por um “mestre” e resume-se, basicamente, em sessões de passes, defumações e banhos lustrais, com cânticos propiciatórios” (Lopes, 2004). A origem do termo catimbó é controversa, embora a maior parte dos pesquisadores afirme que deriva da língua tupi antiga, onde caa significa floresta e timbó refere-se a uma espécie de torpor que se assemelha à morte. Desta forma, catimbó seria a floresta que conduz ao torpor, ou a morte, numa clara referência ao estado de transe ocasionado pela ingestão do vinho da jurema. Outras teorias, porém, relacionam o vocábulo com a expressão cat, fogo, e imbó, árvore, neste mesmo idioma. Assim, fogo na árvore ou árvore que queima relataria a sensação de queimor momentâneo que a ingestão da bebida da Jurema ocasiona. Em diversos estados do nordeste brasileiro, onde os rituais de catimbó são freqüentemente associados à prática de magia negra, a palavra ganha um significado pejorativo, podendo englobar qualquer atividade mágica realizada no intuito de prejudicar outrem. Ainda podemos entender que este termo está ligado a um significado de torpe, que coloca a pessoa em condição de inferioridade pela prática mística, julgo este sempre feito por designação leiga. Os termos juremeiro e juremeira, designando o sacerdote ou sacerdotisa que preside a mesa ou terreiro de Jurema é atualmente utilizado, sendo também recente o entendimento de que os termos catimbozeiro ou catimbozeira devem ser abolidos para uma melhor compreensão dos termos aqui expressos.
A.D.
A.D.
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